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Wanda Pimentel

os anos noventa

7 May – 11 Jun 2022


Abertura

7 May, 14h–18h


Galpão

Rua James Holland 71
São Paulo

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Ensaio crítico por Evan Moffitt (PT)

Ensaio crítico por Evan Moffitt (EN)

A Fortes D’Aloia & Gabriel tem o prazer de apresentar a primeira exposição dedicada à obra de Wanda Pimentel (1943 – 2019) como artista representada da galeria. As seis pinturas selecionadas para essa mostra fazem parte da produção de Pimentel ao longo dos anos 1990, quando a artista depurou sua palheta pictórica e o uso de elementos figurativos. Neste período, Pimentel dedicou-se a empregar linhas ainda mais rigorosas em composições escuras que priorizavam o preto, o cinza, o azul e o marrom. O limite entre o dentro e o fora se embaralha em ambientes soturnos que reforçam a sensação de opressão e confinamento, temática central na obra da artista.

 

Box Cover 

Por Evan Moffitt

 

O que há em uma caixa? Estou encantado com uma caixa que Wanda Pimentel pintou em 1994. Apesar de vazia, ela contém muito. No centro da tela, no local em que sua base cinza deveria estar, só existe um vazio – talvez um buraco na mesa que fica por baixo. Mas mesmo esse suporte não é o que parece: suas bordas se veem espelhadas no teto acima, como se o quadro inteiro fosse um rolo de filme engasgado. Ou, talvez, possa ser uma tampa, outra caixa encobrindo a menor. Não dá para saber onde aquilo tudo termina ou mesmo se existe um mundo fora dos limites da pintura.

 

Pintar foi o mundo de Pimentel por mais de cinquenta anos, mundo este no qual ela se impôs rigorosos limites. Desde o começo dos anos 1960, seus quadros se afastam de gestos expressivos em prol de rígidas geometrias executadas em tons acrílicos saturados. Suas superfícies planas parecem quase manufaturadas, como se estivessem sujeitas aos efeitos despersonalizadores da modernização. Ainda assim, mesmo que Pimentel procurasse eliminar de suas pinturas a marca da sua mão, elas são investidas de um caráter tão forte quanto os trabalhos de pop art da mesma época. A própria artista está sempre por ali nas suas representações da vida doméstica urbana, normalmente não como uma mão, mas como um par de pernas que se intrometem na cena a partir da nossa perspectiva em primeira pessoa. Ela nos convida a ver através dos olhos de uma mulher ao mesmo tempo emancipada e alienada pelo consumismo, revelando brechas nos locais em que as bordas rígidas do capitalismo tardio admitem janelas para fantasias privadas e introspecções.

 

Leon Battista Alberti, escrevendo em 1435, diz que a pintura é como “uma janela aberta pela qual o sujeito… é visto”. Como uma janela – ou, de fato, uma caixa –, uma pintura permite que nos movimentemos entre o bidimensional e o tridimensional. A pintura converte uma perspectiva plana e delimitada em um volume físico que segura o nosso olhar. Essa operação reflete a técnica usada por Pimentel para transformar suas observações de objetos e ambientes imediatos em pontos de vista incisivos de amplas condições sociais e psicológicas. Seu trabalho nos convida a explorar uma fenomenologia do aberto e do fechado, do vazio e do cheio, do sólido e do imaterial, do espaço ao nosso redor e do espaço em nossas mentes.

 

Em 1964, Pimentel era uma secretária de banco de 20 anos, que morava no bairro carioca de Botafogo, quando decidiu se matricular nas aulas de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna. Serpa era um venerado pintor abstrato, proponente do movimento Neoconcreto dos anos 1950. Ainda que a mentoria de Serpa e as inúmeras longas tardes passadas na cantina do MAM com Rubens Gerchman, Antonio Dias e Cildo Meireles tenham sido importantes influências para Pimentel, ela rapidamente forjou seu próprio caminho. No curto espaço de dois anos, ela exibiu suas pinturas no Salão Nacional de Arte Moderna de 1968, que tornou emblemática uma emergente virada cultural em direção à figuração de cores vivas. A Nova Figuração foi uma reação sardônica à recém-instaurada ditadura, à cultura do consumismo, à sociedade patriarcal, fazendo uso de uma estética plana e gráfica reminiscente de John Wesley, Tom Wesselmann, James Rosenquist e Andy Warhol, embora com propósitos muito mais radicais em termos políticos. Pimentel, entretanto, nunca prestou muita atenção à pop art estadunidense ou britânica, descartando o movimento como uma celebração do consumismo que ela tanto buscava criticar. Seu pop feminista rejeitava o patriarcado em todas as suas formas, incluindo o imperialismo econômico, cultural e militar dos Estados Unidos.

 

Assim começou sua série “Envolvimento”, pinturas de espaços domésticos à beira do colapso. Espumas saindo de chaleiras e secadores de cabelo saltam do plano da imagem, como se estivessem em estado de franca revolta contra a sua dona. A artista nos aparece apenas como um par de pernas alvas, os pés estendidos em uma posição de repouso indiferente, enquanto os objetos avançam sobre ela como soldados liliputianos. Embora a fragmentação do seu corpo e a intrusão de monstruosos eletrodomésticos animados aumentem a claustrofobia dessas cenas, ela própria não parece estar reparando muito nisso. “Envolvimento” talvez seja melhor entendido como um “emaranhamento”. Como disse Pimentel a Hans Ulrich Obrist em 2017, “o trabalho é justamente sobre mulheres envolvidas com os objetos da sociedade de consumo”. Existe uma relação erótica entre essa mulher comum e a tecnologia projetada para domesticar o seu sexo, mas nessa relação ela preserva seu direito de não consentir. Não importa o quão confinados nos sintamos olhando para as pinturas, Pimentel quase sempre nos oferece uma possibilidade de resistência ou escape.

 

Faz sentido que, nos anos 1970, ela mudasse seu foco do claustro para o aberto. A série “Bueiros”, um dos seus raros experimentos em escultura, reproduz grades de bueiros que Pimentel encontrava em suas caminhadas pelo Rio de Janeiro (precedendo em vinte anos os ralos que tornariam Robert Gober famoso). Há algo de solitário na imagem de um bueiro, que você só vê quando está andando, ocupado, olhando para os próprios pés. Aqui, podemos pensar que o título da série brincaria com a ideia de orifícios do corpo bloqueados pelo heterossexismo. Nesses trabalhos, Pimentel reivindica para si, com penetrante engenhosidade, a prática do flâneur, o passatempo burguês masculino por excelência.

 

Um senso de transgressão também caracteriza as portas de Pimentel, objetos que ela começou a pintar em escala real em painéis de madeira em 1978. De forma similar aos bueiros, suas portas prometem se abrir para espaços interiores privados. Portas, tais como janelas ou tampas de caixas, são aberturas para algo que, de outra forma, estaria escondido da vista. Pimentel, portanto, moldura o ato de olhar para a arte como um exercício de voyeurismo. Segurando a porta entreaberta enquanto chacoalha as chaves, ela nos convida a olhar.

 

No começo dos anos 1980, Pimentel se mudou para um apartamento na Lagoa, de onde avistava os famosos relevos do Rio de Janeiro: Morro Dois Irmãos, Pedra da Gávea e Morro dos Cabritos. Sua filha pequena aprendeu a engatinhar, depois a andar, finalmente a correr, tomando conta, cada vez mais, do espaço de viver e trabalhar de Pimentel. Ela então abria as janelas e voltava seu olhar para as vistas dramáticas da Baía de Guanabara. Contudo, suas pinturas da série “Montanhas do Rio”, dessa época, são estranhas compressões dessa expansão majestosa, que introduzem céus escuros e nebulosos feitos de índigo ou preto. Linhas axonométricas cortam as formações geológicas, muitas vezes revelando estriamentos de cor, como se ela estivesse escavando camadas de rocha sedimentar. Por exemplo, o quadro de 1986 representando a Pedra da Gávea parece menos com uma paisagem e mais com um raio X.

 

Essas linhas percorrem as pinturas de Pimentel dos anos 1980 e 90, evocando vidros de janela e outros elementos arquitetônicos. Mais inquietantes são os seus túneis sem título, de 1994: ruas de asfalto escuro encontram seu caminho adentrando claras cavidades de montanhas, em direção a um infinito lugar nenhum. Molduras pretas e retangulares, inclinadas em diferentes ângulos, parecem nos entregar a impossível vista de um apartamento no meio de uma estrada. Outros pequenos retângulos pretos flutuam de modo incongruente no plano imagético, denotando, ao mesmo tempo, a planura e a profundidade da imagem. Poderíamos estar diante do Túnel André Rebouças, próximo à casa de Pimentel, ou poderíamos estar encarando o abismo.

 

Os desconcertantes interiores das pinturas da série “Envolvimento” parecem sugerir que, para mulheres emancipadas, o lar burguês não basta como refúgio, no entanto as pinturas do mundo do lado de fora desse ambiente doméstico são igualmente alienantes. Seus túneis e montanhas nos posicionam do outro lado de um cerco arquitetônico ou geológico, barreiras que jamais conseguiremos transpor sem nos perdermos por completo. As pinturas da série “Monumento”, do mesmo período, vislumbram aquelas ubíquas ferramentas de propaganda estatal – estátuas de granito ou bases de concreto – como sombras esvaziadas de seu conteúdo histórico. Em uma pintura sem título de 1994, o objeto poderia ser o busto de um homem ou uma mão em punho. A placa que aparece embaixo dele é tão preta e inexpressiva quanto a sua silhueta. Por trás, uma cerca nos separa de degraus cinzas e recortados (ou talvez um telhado) que espelham os dentes rochosos de uma cadeia de montanhas. O trabalho não tem nada de homenagem simpática, mas apresenta uma aguçada premonição de perigo. Pimentel terminou essa pintura quase uma década após a queda da ditadura, mas a dor daquele silêncio forçado permaneceu com ela. Talvez tornar anônimos os totens da violência estatal fosse sua forma de elaborar o trauma.

 

Na época, Pimentel virou ficção como Heleninha Roitman, a herdeira alcoólatra que se tornou pintora na novela Vale Tudo (1988-89). Não sabemos quanto da personagem foi inspirada em Pimentel, mas as suas obras chegaram a aparecer na novela como se tivessem sido pintadas por Heleninha. Talvez Pimentel tenha mesmo explorado esse estereótipo da artista atormentada, tendo dito em 1987: “Eu nunca pintei com alegria. Tudo o que eu criei foi com dor”. Como será que foi para ela saber que minúsculas versões de “Envolvimentos” eram transmitidas para todos os lares brasileiros em um daqueles televisores que ela via com tanta desconfiança?

 

Contudo, seria simples demais chamar Pimentel de a Cassandra do capitalismo tardio. Seu trabalho é muito espaçoso para caber numa caixa. A não ser, é claro, que seja uma caixa tão ampla quanto aquelas que ela foi capaz de produzir, sem tampa nem fundo, sem dentro nem fora, mas com um buraco pelo qual podemos passar. “Para grandes sonhadores de curvas e buracos, nada nunca está vazio”, observou Gaston Bachelard. Pimentel foi uma grande sonhadora, uma artista criando plenitude em uma sociedade que ela, muitas vezes, achava espiritualmente esvaziada. Em uma de suas caixas, eu gostaria de viver.

Imagens

Vistas da exposição
Obras

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