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Anderson Borba

I’ve seen one of these

25 Jun – 13 Aug 2022


Abertura

25 Jun, 15h–18h


Galpão

Rua James Holland 71
São Paulo

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Ensaio crítico por Victor Gorgulho (PT)

Ensaio crítico por Victor Gorgulho (EN)

Em sua primeira exposição no Brasil, Anderson Borba (Santos, 1972), exibe um conjunto de cerca de vinte obras. Brasileiro radicado em Londres há duas décadas, o artista mudou-se temporariamente para São Paulo onde dedicou-se à produção de esculturas e relevos de parede que evidenciam sua singular abordagem do uso da madeira como matéria-prima de sua prática. Suas peças passam por lapidações, queimas e perfurações conduzidas manualmente pelo artista com o uso de serrotes, goivas e maçarico. Uma camada pictórica encobre parcialmente as superfícies em um processo peculiar de pintura e colagem que emprega recortes de imagens diversas, da cultura queer à etnografia, da mídia mainstream à arquivos pessoais. Victor Gorgulho assina o ensaio crítico que acompanha a mostra.

 

I’ve seen one of these

Por Victor Gorgulho 

 

Marcadas por um forte senso de fisicalidade, as esculturas de Anderson Borba frequentemente assumem escalas quase-humanas, encarando, impávidas, aqueles que as observam. Diante delas, o que parece nos acometer, são inegáveis sensações híbridas entre a familiaridade e o completo desconhecimento, a atração e o estranhamento. O processo escultórico de Borba parece alimentar-se conscientemente deste desejo pela instauração de um território híbrido, deliciosamente instável, ainda que absolutamente consistente, concreto.

 

Em seu texto Objetos Específicos, de 1965, o artista norte-americano Donald Judd é implacável ao especular sobre uma espécie de transformação em curso, à época, no que dizia respeito às práticas convencionais e ditas canônicas com as quais meios como a pintura e a escultura ainda eram produzidas. Em sua sondagem conceitual acerca de novas abordagens à tais meios – historicamente pautados por convenções majoritariamente eurocêntricas – Judd afirma: “A metade, ou mais, dos melhores novos trabalhos que se têm produzido nos últimos anos não têm sido nem pintura nem escultura, frequentemente”.

 

Longe de querer negar, ou mesmo ultrapassar, o uso destes meios nas produções artísticas de então, Judd parecia especular sobre uma interpelação disruptiva que diversos artistas passaram a incorporar em suas práticas. “Agora, a pintura e a escultura são menos neutras (…) qualquer coisa em três dimensões pode ter qualquer forma, regular ou irregular, e pode ter qualquer relação com a parede, o chão, o teto, a sala, as salas e o exterior, ou absolutamente nenhuma”, completa o artista, figura emblemática do movimento minimalista da época.

 

À despeito do evidente gap temporal que os separam, as ideias do americano ressoam, de certo modo, na produção de Anderson Borba. O artista, natural de Santos e baseado há mais de duas décadas em Londres, na Inglaterra, elege diferentes peças, fragmentos e pedaços de madeira de origens diversas como suas principais matérias-primas, conduzindo um processo escultórico guiado em larga parte pela aglutinação e colagem destes fragmentos, orientado mais pela escuta destes materiais do que propriamente focado na realização de algo pensado a priori, esboçado mental ou pragmaticamente. Aqui, portanto, qualquer paralelo traçado entre Judd e Borba se desfaz: ao passo que o minimalista norte-americano era notoriamente autor de uma produção em que o emprego de materiais industriais era um recurso rígido e anteriormente planejado, as esculturas de Borba são frutos completos de um íntimo processo do artista com seus materiais, da coleta destes à forma final de suas obras.

 

O artista guia sua produção até uma região um tanto limítrofe, que o permite conjugar referências que vão da tradição escultórica popular brasileira às mais distintas práticas contemporâneas no meio. Se por um lado identificamos um uso vernacular dos materiais empregados em sua produção, vemos também uma devoração contemporânea das imagens – oriundas de fontes diversas, usualmente de revistas científicas, de cunho etnográfico ou mesmo ligadas ao universo queer – em larga parte responsável por este esgarçamento do que aqui nomeamos como um “território híbrido” em seu trabalho.

 

Após um extenso período de trabalho manual dedicado às peças de madeira, Borba inicia um engenhoso método de colagem de imagens múltiplas sobre a superfície das esculturas, que, por sua vez, absorvem o papel como uma espécie de pele, como excêntricas vestimentas que as encobrem da completa nudez. Reside, aqui, um dos aspectos que talvez expliquem objetivamente tal desconcerto mencionado há pouco. A colagem na prática de Borba assume contornos nada óbvios ou previsíveis. Da natureza das imagens escolhidas pelo artista ao modo como são aglutinadas entre si sobre a superfície da madeira, em nada evocam procedimentos convencionais próprios deste campo.

 

Em parte, talvez, pelo fato do artista nunca abandonar completamente o processo de lapidação de suas peças – utilizando suas ferramentas para realizar perfurações, cortes, cavidades, orifícios e mais, nelas – as imagens que repousam sobre a pele da madeira ganham dúbios aspectos, ora pictóricos ora irreconhecíveis, em um singular processo de assemblage que as justapõem em composições enigmáticas, por vezes revelando apenas contornos pictóricos-cromáticos, ou em outras ocasiões deixando-as mais próximas do reconhecimento de vultos figurativos, reconhecíveis por quem as observa de perto.

 

Se falamos, até aqui, de uma prática escultórica que se desenvolve majoritariamente no campo tridimensional, tomando o espaço expositivo com uma insuspeitada força e presença, é preciso adereçar, também, os relevos de parede realizados pelo artista, esculturas pensadas para o plano bidimensional. Talvez sejam elas as obras que mais provocam nossos sentidos ao aproximarem-se de uma natureza pictórica quase abstrata. Em Após a tempestade (2022), vemos um painel irregularmente retangular, onde as imagens aplicadas sobre a madeira nos impedem de tecer conclusões fortuitas ou velozes. É pintura?, perguntamo-nos, silenciosamente. Será uma paisagem abstrata, talvez?, seguimos em nossos questionamentos infindos.

 

Já obras como Grizzly (2022), outro relevo escultórico, o artista deixa explícita a presença figurativa de um macaco, envolto por uma complexa gama de cores perfuradas por suas ferramentas, deixando reconhecíveis apenas os traços do rosto do mamífero em questão. É a este processo constante de tentativa de reconhecimento das criaturas construídas por Borba que alude diretamente o título da exposição. Originado a partir de uma antiga obra do artista, I’ve seen one of these responde prontamente a este gap óptico-cognitivo que atravessa o espectador. Entendemos, em pouco tempo de fruição, que estamos diante de um corpo de obras ontologicamente nada fáceis de serem categorizadas.

 

Julgamos já ter visto alguns destes seres, muitos dos quais, naturalmente, flertam com a antropomorfia: uma objetiva semelhança com aspectos próprios de seres vivos, sejam estes humanos ou não humanos. Tudo o que a boca come (2022), torna esta dimensão evidente através de seu título e de sua composição visual. Vemos despender, de um largo orifício oval (um rosto? uma boca?), uma lânguida peça de madeira que inclina-se, sensualmente, sobre os dois lados da obra. Se a prática de Borba, como anteriormente dito, evoca a tradição popular brasileira – flertando com nomes como José Bezerra, Agnaldo dos Santos e tantos mais – relaciona-se também com a produção de nomes contemporâneos fundamentais para pensarmos esta expansão das possibilidades materiais e semânticas do campo escultórico, identificável na produção de artistas como Ivens Machado, Martin Puryear e Alexandre da Cunha, para citar apenas alguns.

 

Há, entretanto, uma peculiar característica intrínseca à produção de Anderson Borba. Se o pensamento convencional em torno do fazer escultórico entende o labor manual como uma relação física direta entre as mãos do artista e o material sobre o qual ele trabalha, aqui presenciamos um desvio à tal norma. Entre a mão do artista e a madeira, há sempre a irrevogável mediação por alguma de suas muitas ferramentas: formões, goivas, maçaricos, e até serras elétricas.

 

Dentre estes, talvez o de uso mais singular seja o maçarico com o qual o artista queima algumas de suas peças. Já erguidas em estruturas verticais ou horizontais, Borba – em um gesto formal tão radical quanto preciso – utiliza a chama do fogo emitida pela ferramenta para queimar algumas das obras, emprestando-as novas nuances de uma complexa paleta de cores e tons que a madeira pode assumir. Mais escuras ou claras, mais densas ou leves, apresentam-se todas como um coeso conjunto que ainda ganha, pontualmente, pequenos adereços no momento derradeiro de suas feituras. Pedaços de corda, pequenas quantidades de pigmentos naturais e outras micro adições são feitas pelo artista, ainda no ateliê.

 

Após determinado tempo despendido na presença de suas esculturas, há um súbito esvaziamento daquele sentimento primeiro de um desconcertante desconhecimento sobre a natureza daqueles seres que estamos a observar. Definitivamente já vimos alguns deles antes: não exatamente como apresentam-se agora, mas, de algum modo, como figuras familiares aos nossos olhos e cérebros, que irão, provavelmente, retê-las de tal maneira que permanecerão conosco por dias e semanas por vir. We have definitely seen one of these before, pensamos. Já as vimos antes e certamente delas nos lembramos, como velhos amigos que não vemos há tempos, mas que, de alguma maneira, permaneceram em uma região remota de nossos cérebros. Respiramos em alívio, esboçamos tímidos sorrisos, quase a cumprimentar estes estranhos (re)conhecidos.

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Vistas da exposição
Obras

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