Hallstatt
10 Dec 2016 – 17 Feb 2017
Curadoria de Maria do Carmo M. P. de Pontes e Kiki Mazzucchelli
Abertura
9 Dec, 20h–22h
Galpão
Rua James Holland 71
São Paulo
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Alexandre da Cunha | Amie Siegel | Candice Lin | Caragh Thuring | Daniel Sinsel | Iman Issa | Joshua Sex | Manoela Medeiros | Mauro Restiffe | Nuno Ramos | Oliver Laric | Tamara Henderson | Tobias Hoffknecht
Hallstatt toma a noção de dualidade como ponto de partida para uma reflexão sobre o significado da repetição de signos, imagens e formas no contexto contemporâneo. A ideia de dualidade estrutura o pensamento ocidental desde o mito fundador da criação, estabelecendo-se como tema recorrente na literatura e na psicanálise a partir do século XIX. A exposição reúne a obra de treze artistas que, em suas práticas, lidam com o duplo por meio de diferentes estratégias, seja em seu entendimento mais fundamental – através de simetrias formais – ou filosóficos e existenciais: o duplo como um estado alterado de percepção, cópia, reciclagem ou índice de realidades paralelas. Ao propor mais questões do que respostas definitivas, a mostra visa ampliar a discussão em torno do tema, tão urgente em um momento em que verdades absolutas são cada vez mais propagadas – e o lugar da verdade, cada vez mais difícil de se identificar.
Alexandre da Cunha (Rio de Janeiro, 1969. Vive em Londres), é mais conhecido por esculturas que revisitam e ressignificam objetos cotidianos. Suas telas – que o artista enxerga antes como esculturas de parede do que como pinturas – seguem a mesma lógica ao incorporar materiais como esfregões, chapéus, conchas e escovas. A série Amazons (2014 – em andamento) tem como matéria prima toalhas de praia com estampas extravagantes. Cada uma das obras de Amazons reúne um grupo de toalhas a princípio idênticas, que Da Cunha tinge – dando a cada parte diferentes graus de nitidez – e costura em sequência, enfatizando noções de acúmulo e repetição.
Amie Siegel (Chicago, 1974. Vive em Nova York) trabalha majoritariamente com instalações audiovisuais que lidam, de diversas maneiras, com noções de dualidade. O vídeo Genealogies (2016) é uma espécie de arqueologia de referências da artista, em que ela articula a ideia de que há sempre citações a outras obras em projetos supostamente originais, tomando O Desprezo (1963) de Jean-Luc Godard, como estudo de caso. O clássico de Godard é também o tema de The Noon Complex (2016) uma projeção dupla acompanhada de um televisor em que ela desconstrói o filme, removendo digitalmente Brigitte Bardot da narrativa. O televisor mostra uma atriz reencenando os movimentos de Bardot, incitando o espectador a um processo dialético de sobreposição de imagens para obter uma narrativa completa.
Candice Lin (Concord, Massachusetts, 1979. Vive em Los Angeles) faz uso de diversos suportes para elaborar uma investigação minuciosa sobre o reino animal, focando sobretudo em fenômenos naturais e microrganismos como fungos e bactérias. Por exemplo, Hormonal Fog (Study #1) (2016, em colaboração com Patrick Staff) consiste em uma máquina de fumaça emitindo periodicamente uma substância que bloqueia a produção de testosterona. Nas colagens apresentadas em Hallstatt, a artista explora narrativas sobre fenômenos naturais que foram historicamente marginalizadas pela ciência: registros sobre homens que produzem leite materno, histórias sobre médiuns do sexo feminino que canalizam grandes figuras políticas, entre outras. Apresentadas como as amostras de espécies características dos museus etnográficos, esses trabalhos traçam uma história paralela da ciência que desafia categorias binárias tradicionais relativas ao gênero, às práticas culturais e à reprodução.
As pinturas de Caragh Thuring (Bruxelas, 1972. Vive em Londres), perpassam noções de dualidade através de diferentes gestos. Por exemplo, o híbrido entre um vulcão e uma pirâmide – e, em nível mais fundamental, o tijolo que constitui esse híbrido – é uma imagem recorrente em sua obra. Outras de suas telas são inspiradas por composições de artistas canônicos, como Édouard Manet e Filippo Brunelleschi. Há ainda pinturas que Thuring enxerga simplesmente como duplas, uma precisando da outra para existir. Aqui, a artista mostra três telas quase idênticas nas quais retrata vulcões – versões em bordado de um desenho que ela realizou no início de 2016, que por sua vez é inspirado em guaches napolitanos do século XIX –, fagocitando a própria obra ao mesclar noções de fundo e figura. Thuring mostra também duas outras telas em que usa tijolos para construir figuras humanas executadas em escalas contrastantes: três homens diminutos posando em David Gandy (2014) e uma mulher agigantada em Brick Lady (2013).
Daniel Sinsel (Munique, 1976. Vive em Londres) incorpora materiais orgânicos como sementes ou peles de animais em composições que perpassam a superfície bidimensional da tela, conferindo-lhes uma qualidade escultórica. Seus primeiros trabalhos, produzidos no início da década de 2000 – muitos dos quais retratavam jovens homens nus ou seminus – já apontavam explicitamente o seu interesse em explorar a noção de erotismo na pintura. Esse tema recorre em toda a sua produção, mesmo nos trabalhos onde a referência é menos evidente. Nas duas obras recentes apresentadas em Hallstatt, por exemplo, o erotismo é evocado a partir da relação criada entre aquilo que está dentro e fora da tela, daquilo que sua superfície oferece ou oculta ao espectador. Além disso, ao incorporar objetos cuja materialidade não é completamente identificável, cria uma espécie de tromp l’oeil que levanta dúvidas sobre o que é realidade ou representação. Pintura/escultura, dentro/fora, realidade/representação são apenas alguns dos dualismos que perpassam a obra de Sinsel, calcada, acima de tudo, no jogo de sedução que o artista estabelece entre espectador e obra.
Na série de esculturas intitulada Lexicon (2012 – em andamento), Iman Issa (Cairo, 1979. Vive entre Cairo e Nova York) revisita obras de arte que são apresentadas na forma de estudos para remakes contemporâneos. Embora retenham os títulos dos desenhos, pinturas, esculturas e fotografias originais, os trabalhos resultantes não são reproduções fiéis ou cópias das obras originais, mas interpretações cujas formas diferem significativamente de suas fontes. Ao propor novas formas para esses trabalhos, Issa busca comunicar algo mais familiar e consistente com sua própria experiência a partir das ideias sugeridas pelos títulos. As esculturas são acompanhadas de legendas museológicas que contém breves descrições dos elementos originais, bem como sua procedência e data, oferecendo pistas sobre a identidade de seus duplos originais sem revelá-los completamente.
Joshua Sex (Dublin, 1985. Vive em Londres) é um pintor e escritor cuja pintura está intrinsecamente ligada a noção de reciclagem. Durante o seu mestrado no Royal College of Arts, em Londres (2011 – 2013), o artista passou a se apropriar de fragmentos de telas descartados nos corredores da universidade, usando-os como base para as suas composições. O que começou por necessidade ou diversão tornou-se um modus-operandi de Sex, que a partir de então passou a sempre necessitar dessas pistas na forma de vestígios para compor suas telas. O artista apresenta um conjunto de cinco pinturas realizadas entre 2012 e 2015.
As esculturas, pinturas, performances e instalações de Manoela Medeiros (Rio de Janeiro, 1991. Vive no Rio de Janeiro) têm como foco o corpo e suas relações com o tempo e o espaço. A alusão à pele e à permeabilidade são elementos recorrentes tanto nos trabalhos em que utiliza seu próprio corpo como nas instalações site-specific em que trabalha sobre as superfícies da parede para criar composições ambientais. Nessas últimas – a exemplo da instalação que a artista desenvolveu especificamente para Hallstatt – Medeiros descasca obsessivamente seções do revestimento das paredes e cria espelhamentos das formas produzidas pela sua ação, às vezes utilizando o próprio detrito de tinta produzido em sua feitura ou elementos tridimensionais incorporados ao trabalho.
As fotografias de Mauro Restiffe (São José do Rio Pardo, 1970. Vive e trabalha em São Paulo) são invariavelmente produzidas por meio de procedimentos analógicos e sempre em P&B, o que lhe permite obter uma gama de tonalidades e texturas muito mais ampla do que na fotografia digital. Ao longo das últimas três décadas, Restiffe desenvolveu um sólido corpo de trabalhos no qual a arte e a arquitetura são assuntos recorrentes. A arquitetura de Brasília e seu simbolismo cultural e político são pano de fundo para duas séries produzidas respectivamente à ocasião do empossamento do Presidente Lula (Empossamento, 2003) e do enterro de Oscar Niemeyer (Oscar, 2012), da qual uma das imagens está presente em Hallstatt. Ao registrar o mesmo local após um intervalo de tempo, o artista estabelece uma relação de dualidade entre as séries, que faz com que as imagens sejam atualizadas e ressignificadas. A exposição inclui ainda dois trabalhos da série Rússia (2015), que evidenciam o interesse de Restiffe em capturar imagens (pinturas, fotografias, etc) dentro da imagem fotográfica, ressaltando a relação dialógica entre espectador e imagem e a natureza ilusória da imagem.
Nuno Ramos (São Paulo, 1960, onde vive e trabalha) explora noções de dualidade, mimese, intertextualidade e repetição através de diferentes linguagens e materiais, que vão do texto à imagem, do som à encenação. Em Hallstatt, Ramos apresenta 3 cinzas (Ai, pareciam eternas!), uma instalação efêmera composta por cal, cinza e sal. O artista reproduz no chão do Galpão a linha da fachada de três casas em que morou – a da avó, a da mãe e a casa onde os filhos nasceram – utilizando um pó diferente para cada contorno. Ao longo da exposição, as linhas desmancham-se e rearranjam-se com pisadas e vento. A obra alude a 3 lamas (Ai, pareciam eternas!), instalação site-specific realizada por Ramos em 2012 mas, sobretudo, ao deslocamento de lugares afetivos, da memória. Ramos exibe também a obra Un Coup de Dés, que é uma versão em vidro e ácido do poema de Stéphane Mallarmé, Un Coup de Dés Jamais N’Abolira le Hasard (1897), tido como o primeiro poema tipográfico da história. Na versão de Ramos, as lâminas de vidro são sobrepostas, permitindo que os versos, gravados no vidro em ácido, sejam lidos em sua totalidade. O artista contribui ainda com o ensaio Bonecas russas, lição de teatro, publicado originalmente em seu livro Ó, de 2008, e republicado no catálogo da exposição.
Desde o início de sua prática artística há cerca de dez anos, Oliver Laric (Innsbruck, Austria, 1981. Vive em Berlim) toma a cópia, apropriação e ressignificação como nortes de sua obra. Em Hallstatt, Laric mostra duas esculturas que integraram sua exposição recente no Secession, em Viena (Photoplastik, abril – junho de 2016), em que ele produz scans em 3D de esculturas públicas localizadas na mesma cidade – no caso, o Monumento à Auguste Fickert de Franz Seifert (1929) e Polar Bear and Seal, de Otto Jarl (1902) – e os reimprime em poliamida. O artista disponibiliza todos esses scans em um website, onde qualquer um pode baixá-los, apontando assim também para a noção de dispersão.
Tamara Henderson (New Brunswick, Canadá, 1982. Vive no Canadá) produz majoritariamente esculturas e instalações – por vezes funcionais – que ela imagina enquanto em um estado alterado de percepção, seja sob hipnose, barbitúricos ou durante o sono. Em Hallstatt, Henderson mostra duas grandes cortinas que produziu durante uma residência em Hospitalfield House, em Arbroath, na Escócia. As obras funcionam como um portal para uma realidade paralela imaginada pela artista, um elemento de transição que assinala o movimento de passagem de uma dimensão a outra. Cada uma das peças sintetiza o imaginário subjetivo associado a essas realidades, consistindo, nas palavras da artista, em “cartões postais de paisagens enxergadas através de escotilhas”.
Tobias Hoffknecht (Bochum, Alemanha, 1987. Vive em Colônia) formou-se na Academia de Artes (Kunstakademie) de Dusseldorf, em 2013, onde estudou sob a orientação de Rosemarie Trockel. Adotando uma estética minimalista, Hoffknecht produz instalações geralmente compostas de duplas de elementos escultóricos que criam diferentes relações entre o espectador e o espaço expositivo. Com acabamento preciso, suas peças se assemelham a ready-mades industriais, embora sejam trabalhos únicos fabricados de acordo com as especificações do artista. Assim, estabelecem um diálogo estreito com o design, muitas vezes evocando mobiliários ou interferindo diretamente na arquitetura do espaço expositivo. Em Hallstatt, Hoffknecht apresenta duas esculturas inéditas em madeira e aço inoxidável, materiais recorrentes em sua prática.
Ainda em exposição estão cinco duplas de pratos que pertencem a duas coleções particulares de São Paulo e datam entre 1750 e 1860. Alguns foram adquiridos já em pares; em outros casos, os colecionadores compraram um e esperaram anos até encontrar o seu duplo. Por serem manufaturados, cada peça apresenta pequenas diferenças em relação a seu par – uma flor maior, uma árvore com folhagem mais espessa e assim por diante – convidando o espectador a inspecioná-los minuciosamente, como em um jogo dos sete erros. Há uma exceção curiosa, em que a discrepância é a princípio óbvia; após uma análise próxima, percebe-se que enquanto ambas caldeiras apresentam diferentes cenas palacianas, suas bordas repetem o mesmo padrão.
Hallstatt é um vilarejo cinematográfico situado à beira de um lago rodeado por montanhas na Áustria. Há cerca de cinco anos, passou a receber um enorme fluxo de turistas chineses – mais do que o habitual, mesmo para um lugar cuja principal economia é o turismo. Um deles, desavisado, revelou a um local que na província de Guangdong, na China, uma cópia idêntica de Hallstatt encontrava-se em estado já avançado de construção, para a surpresa dos menos de mil habitantes do vilarejo, que não haviam sido consultados. De fato, a China tem a prática de reproduzir monumentos ocidentais em seu solo, mas pela primeira vez copiava-se uma cidade inteira. Essa apropriação é especialmente simbólica considerando-se que Hallstatt possui a mais antiga mina de sal do mundo e um dos mais antigos sítios arqueológicos da Europa. De certa forma, trata-se assim da cópia por excelência: a apropriação da matriz de uma cultura.