Márcia Falcão
Márcia Falcão
12 Mar – 23 Apr 2022
Abertura
12 Mar, 14h–18h
Galpão
Rua James Holland 71
São Paulo
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Cacos vermelhos
Por Raphael Fonseca
Na pesquisa de Márcia Falcão, a “mulher brasileira” – tão sexualizada, objetificada e estereotipada por centenas de autores nas artes visuais e na cultura de massa – não se encontra sambando e cheia de purpurina ao som de “Lá vou eu, lá vou eu / hoje a festa é na avenida”. Suas obras nos lembram de uma constante tensão entre prazer e violência, entre a festa e a violência que acomete tantas mulheres ao seu redor. Longe de apontar dedos, são imagens que corporificam contradições do estar viva no Rio de Janeiro, no Brasil e em qualquer lugar do mundo.
Começamos a reflexão sobre os trabalhos reunidos nesta exposição a partir de seus títulos: “Badass”, “Catedral”, “Adorando pelo avesso”, “Matriforma” e “O êxtase” são alguns deles. Nestes enunciados fica evidente a associação proposta pela artista entre o corpo feminino e a igreja, entre imagem e bunda, entre pintura e maternidade; se as catedrais foram – e ainda o são para algumas pessoas – espaços acolhedores, Márcia Falcão está mais interessada em como o corpo e, porventura, o seu próprio corpo quando transformado em pintura, pode ser tensionado como lugar simultâneo de acolhimento e repulsa.
Voltemos nosso olhar justamente para “Catedral” (2022): ao centro da composição, uma mulher é representada de costas. De sua coluna vertebral saem estruturas arquitetônicas em formato de arco ogival, tal qual vemos nos edifícios góticos. Essa referência à arquitetura europeia, porém, recebe um tratamento que recupera essa cultura visual de volta para o subúrbio carioca: essas edificações são decoradas com cacos vermelhos, tais quais aqueles encontrados no bairro onde a artista foi criada: o Irajá. O corpo desta mulher é apresentado como alicerce da pintura e da metáfora trazida pela noção de catedral; o espaço do voluptuoso sagrado feminino proposto por Márcia Falcão se confunde e se contamina com a noção de domesticidade que parece asfixiar esse corpo pintado.
Em “Matriforma” (2022), essa leitura faz ainda mais sentido. Novamente de costas e ostentando uma silhueta grande e curvilínea, outra figura humana se apresenta para o espectador com uma aparência amorfa. Nos detalhes de suas entranhas, entre marrom e vermelho, percebemos outros corpos que lembram as formas de bebês acoplados ao seu tronco. Todos esses elementos se fundem numa massa só; a individualidade desse corpo – facilmente relacionada a noção de matriarcado – parece diminuta pela ausência de sua face. Esse corpo parece desintegrar entre pinceladas e nos é entregue ao olhar como se fosse exclusivamente agente da amamentação e dos cuidados para com esses supostos filhos da figura central. Haveria, nesta pintura, espaço para o gozo ou este foi reservado exclusivamente para a estafa?
Na pintura “Adorando pelo avesso” (2022), a única obra da exposição onde o rosto da figura pintada enfrenta o público frontalmente, notamos a passagem que Márcia Falcão faz do vermelho da arquitetura popular para os muitos tons encontrados em um espaço que remete a um açougue. Parcialmente ajoelhada e nua, essa grande mulher, tal qual uma cariátide, nos olha com os lábios entreabertos – um momento para respirar de boca aberta? Uma pausa antes de um discurso? Como em toda pintura, eis o mistério oferecido aos nossos olhos e imaginação. De toda forma, temos a certeza de que não há espaços vazios e calmaria para essa presença; sua pele negra é totalmente circundada por vermelhos que misturam fundo, solo e esse corpo centralizado. Eis uma sobrevivente à carnificina que é a vida na sua banalidade cotidiana.
De pouco a pouco, a artista sugere um inventário de situações desconfortáveis que rodeiam estas personagens – ou rodeariam a ela própria? Longe de nos responder tudo de uma vez, ela parece interessada em nos entregar uma das coisas que mais ama na vida – a pintura e sua capacidade de criar narrativas sem um significado cerrado. Seja nas suas alegorias sobre a violência urbana, seja no seu olhar dilacerante sobre as muitas solidões das mulheres não brancas – especialmente daquelas que são mães, assim como ela -, Márcia Falcão nos convida a juntar as peças de seus quebra-cabeças. Para a artista, a pintura é uma forma de dar sentido para existências que estão em cacos. Assim como na vida, sempre haverá algo faltando. Enquanto isso, vamos juntando os fragmentos de seus chãos vermelhos e aprendendo sobre as histórias que suas pinturas contam.