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Judy Chicago & Leda Catunda

12 Mar – 23 Apr 2022


Abertura

12 Mar, 14h–18h


Galpão

Rua James Holland 71
São Paulo

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Ensaio crítico por Julia de Souza (PT)

Ensaio crítico por Julia de Souza (EN)

Arrojar os membros, fundar o mundo: pronunciá-lo

Por Julia de Souza

 

Gramática é política por outros meios

Donna Haraway

 

Na introdução do livro Autobiografia do vermelho, a poeta Anne Carson propõe que “Substantivos nomeiam o mundo. Verbos ativam os nomes. Adjetivos vêm de outro lugar” e “estão encarregados de vincular todas as coisas do mundo ao seu lugar no particular”.

 

Em muitas de suas composições, Judy Chicago elege, entre essas três categorias gramaticais, o verbo, formulando máximas ou proposições que dinamizam o contato com as imagens e fazem da observação um gesto necessariamente implicado. É o caso de “Do a Good Turn” — título muitíssimo ambivalente, pois “good turn” pode significar, em inglês, tanto “boa volta” quanto “boa ação”. Cada um dos retalhos de tecido que compõem o quadro — em variações de laranja e roxo e dispostos simetricamente ao redor de um centro, onde o título se estampa — ilustra um evento emblemático da manutenção da espécie: a cópula, o confronto, os primeiros passos de uma criança, a velhice de bengalas. Cabe a nós reconhecer ou não uma ordenação cíclica nesse diagrama, pesar sua ironia — e refletir sobre o gênero indistinto dos personagens que ali figuram.

 

Os trabalhos de Leda Catunda, por outro lado, exploram o caráter intensivo dos adjetivos, esses cumpridores da ênfase que está incubada em cada coisa do mundo. Quando dão nome aos trabalhos de Leda, os adjetivos são quase sempre femininos — “Vermelha”; “Recheada”; “Camuflada” — e provocam uma espécie de cisma: o teor e a qualidade dessas composições sintetizam ou embaralham as ideias e a experiência do feminino?

 

Há uma civilidade da indisciplina em certos trabalhos de Catunda, se considerarmos a tensão entre particular e coletivo que há, por exemplo, em “Vermelha” e “Deusa”. Parece ser a partir de uma vista aérea que “Vermelha” se apresenta: um arquipélago ou um mapa fluvial tingido de vermelho em que algumas ilhas coexistem, abrigando personagens de mangá, círculos que se assemelham a buttons ou aos antigos lacres de cera, caracteres chineses sobrepostos à calçada de Copacabana, e uma logomarca: “Planet Girls” — garotas do planeta.

 

As muitas saliências da grande paisagem vermelha concorrem com o aspecto de cartografia aérea que a princípio atribuímos à obra. Essas protuberâncias de tecido estofado, os focos escamosos de aspecto epidêmico, os elementos franjados que excedem qualquer lisura, as gotas gordas que caem na direção do solo — tudo isso faz com que encaremos a tela de frente, com os pés no chão.

 

Algo, portanto, se pronuncia. Verbo de origem latina, “pronunciar” denota tanto a ação de dizer, emitir sons, falar, como o gesto de salientar, produzir um relevo, fazer algo pender para frente, projetar-se. Aquilo que salta da superfície, que se pronuncia, é também algo que quer ser enunciado ou arrojado.

 

Entre 1982 e 1985, Judy Chicago desenvolveu a antológica série Birth Project, que resultou em mais de oitenta peças idealizadas pela artista e executadas por mais de 130 costureiras de diversos países. No evento do parto, motivo central dessas obras, também há algo que é lançado para fora: o rebento que desponta enfim no mundo. Em “Birth Power”, o vigor desse acontecimento se manifesta nas cores quentes que delineiam o corpo da mulher, de cujo ventre jorra uma cascata de fogo que vincula o acontecimento culminante da geração da vida à força de um vulcão. Essa expulsão incendiária é também o elemento que interrompe o rigor com que Judy, em tantos trabalhos, traça os contornos de suas figuras. Mesmo em “Smocked figure” [Figura bordada], os limites da silhueta de uma mulher grávida são precisos; e a aparente indistinção entre os espaços interno e externo à figura, ambos cor de areia pálida, é um engano: a trama que integra os limites do corpo é tecida em um sentido horizontal, enquanto aquilo que está fora tem nervuras que escorrem verticalmente. Em ambas as obras, a mulher é configurada a partir de uma reencenação de eventos emblemáticos — engravidar, parir — e, portanto, a partir da reiteração do verbo.

 

Movida por sua pesquisa em torno da tradição feminina e comunal dos quilts, Judy Chicago cria peças cuja estrutura faz lembrar bandeiras, cartazes ou até mesmo escudos. É o caso de “Hitch Your Wagon to a Star” [Engate seu vagão a uma estrela], em que figuras humanas se reúnem no interior da estrela localizada no centro do quadro, como se buscassem todas elas a mesma jornada multicolorida rumo às alturas. O que se pronuncia nos trabalhos de Chicago parece sair de muitas bocas que cantam em uníssono algo próximo dos versos de Safo: “nós vivemos/ o avesso./ Audaz.”[1]

 

Leda Catunda, por outro lado, trabalha a partir de um ímpeto de desmembramento. Os dois círculos de “Sisters”, feitos de retalhos de tecido, se assemelham a dois órgãos despregados da totalidade corpórea. Os dois membros, um maior que o outro — seriam um signo de caráter reprodutivo? — são conectados por dois tubos, como se ainda preservassem um traço orgânico através desse pequeno sistema venoso.

 

Se em Chicago a língua de fogo é contínua ao corpo da mulher em trabalho de parto, as línguas de Catunda são avulsas ou deslocadas. Em “Duas línguas”, uma língua alaranjada brota lascivamente de dentro de outra, vermelha, ambas burlando com sua viscosidade os limites de uma moldura preta.

 

Explorando a vocação desestabilizadora e excitante das palavras, Leda nos apresenta uma outra língua — que, desta vez, leva o título de “Recheada”. Nesse estandarte composto de numerosas camadas de tecido sobrepostos, em tons que progridem do vermelho ao amarelo e então do amarelo de volta ao vermelho, uma grande língua pênsil ameaça tragar o mundo — e a nós — com sua lambida de monstra. Há, porém, um furo que atravessa cada uma de suas camadas, pondo em risco o recheio que seu nome carrega. Seria possível dizer que esse furo corresponde à fenda do órgão sexual feminino; porém, e mais do que isso, esse furo é uma boca. A língua “recheada” de Leda Catunda é glutona ao ponto de conter também, numa subversão da ordem das coisas, uma cavidade bucal. Trata-se, assim, de uma língua recheada pois intensiva, e aberta pois devoradora.

 

O órgão reprodutor feminino — tradicionalmente associado a um vácuo, uma falta — também surge boquiaberto e preenchido em “Childbirth in America”, de Judy Chicago. De seu núcleo, sob uma forma tanto solar como floral, desponta o acontecimento da gênese.

 

No ensaio “O gênero do som”, a mesma Anne Carson citada no início deste texto nos lembra oportunamente que “a mulher tem duas bocas”; toda boca é uma concavidade que pretende a deglutição, a pronúncia e o prazer, e essa tripla ameaça desperta nos homens uma investida contra tamanho esbanjamento. “O silêncio é o kosmos [boa ordem] das mulheres”, escreveu Aristóteles em sua Política. Na articulação dos trabalhos de Judy Chicago e Leda Catunda, tanto o silêncio como a boa ordem são revogados: os verbos propositivos e as imagens icônicas de Chicago anunciam uma mudança de estado e um senso de prontidão para encarar o estatuto do feminino. Em Catunda, os microclimas delirados, as protuberâncias e os membros tão dispersos quanto enfáticos atropelam qualquer possibilidade de acanhamento.

 

Na mitologia da Grécia helênica, a Górgona, foi sempre representada pela máscara monstruosa e mortal que é seu rosto, e considerada por Sófocles “a garota sem porta na boca”. E eis que Gorgó aparece (duplicada) no trabalho “Deusa”, de Leda Catunda, como um dos personagens da geleia geral contida nesse pequeno território circular. Em “Deusa”, a aparição de Gorgó — avesso da divindade e incapaz de qualquer “boa ação” — é uma marca de insurgência.

 

No centro do enorme quadro “Mother India”, de Judy Chicago, um dos braços de Shiva acolhe um bebê, enquanto seus outros membros parecem tentar impedir a dispersão de quatro pequenos corpos humanos. Na cosmologia hindu, Shiva costuma ser configurado ora como entidade masculina, ora de gênero misto — mas, numa torção do imaginário tradicional, a Shiva imaginada por Judy Chicago não só amamenta uma criança como está grávida: trata-se de uma Shiva.

 

Desenvolvido a partir de uma extensa pesquisa sobre as condições da mulher na sociedade indiana, “Mother India” também exibe, em torno de Shiva, diversas cenas de sofrimento que aludem à violência dos casamentos arranjados, dos partos em condições precárias, do infanticídio e do confinamento das mães. Ao redor de uma Shiva transmutada em mulher e que se desdobra enquanto mãe, expõe-se um inventário dos sistemas que cerceiam a experiência feminina.

 

Divindade essencialmente ambígua, Shiva é responsável tanto pela destruição quanto pela transmutação. E é também o poder de metamorfose que fez da Górgona uma criatura tão assombrosa: quem a olhasse nos olhos, se transformava em pedra. As duas figuras mitológicas tratam, portanto, de uma força tão desestabilizadora quanto inventiva.

 

Nesse interpelar, converter, desmembrar, qualificar e reconstituir o tecido do mundo, Judy Chicago e Leda Catunda se encontram — dissonantes, mas ambas ativando a dicção e o tônus das partes do corpo e fazendo com que elas saltem, fecundas, hiperbólicas ou devoradoras, vibrando como pregas vocais em nossa direção.

 

[1] Tradução livre de um dos fragmentos de Safo traduzidos por Anne Carson em If Not Winter. Na versão de Carson: “we live [ ] the opposite [ ] Daring”

 

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