JT01171_Grey Pink Mind_Ph edit_DDH2

Janaina Tschäpe

FIRE
just sparkles
in the sky

30 Apr – 25 Jun 2022


Abertura

30 Apr, 14h–18h


Carpintaria

Rua Jardim Botânico 971,
Rio de Janeiro

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Ensaio crítico por Pollyana Quintella (PT)

Ensaio crítico por Pollyana Quintella (EN)

Temos o prazer de apresentar ‘FIRE just sparkles in the sky’, exposição individual de Janaina Tschäpe na Carpintaria, Rio de Janeiro. As oito pinturas inéditas incluídas na mostra marcam uma nova direção na obra da artista que incorpora o uso do bastão de óleo, ampliando suas possibilidades gestuais e intensificando o vigor de suas composições.

 

Há um fogo que brilha no céu da pintura

Por Pollyana Quintella

 

Não há nada estável aqui. Emaranhados flutuantes correm de lá para cá, sobrepõem-se e avançam uns sobre os outros, profanam a superfície balbuciando enunciados que logo se desfazem, dedicados a atrair a visão para a órbita de seu campo magnético. Talvez estejamos diante de fragmentos de um mundo comprometido em recusar sentidos unívocos, um mundo interessado em produzir sussurros ambivalentes entre transparência e opacidade, ruído e mudez.

 

A presente mostra de Janaina Tschäpe apresenta ao público brasileiro os resultados de uma mudança recente na produção da artista – os lápis de aquarela e giz de cera de outrora deram lugar aos bastões de óleo, agregando mais maleabilidade e fluidez sobre a superfície, bem como uma ampliação de cores e possibilidades gestuais (eles a permitem, literalmente, “desenhar à óleo”). Há um convite, porém, para que a pintura seja experimentada em sua estratificação visual. Por baixo dos riscos velozes e expressivos obtidos com os bastões, situam-se largas pinceladas de caseína, responsáveis por estruturar a pintura a partir de um aspecto aquoso e lúbrico que se contrasta com a textura impositiva do óleo. Tschäpe conjuga diferentes propriedades para construir um corpo pictórico singular que pende entre o etéreo e o palpável, o volátil e o imperativo: enquanto o óleo ostenta a capacidade de produzir tangibilidade sobre aquilo que inscreve, a caseína manifesta a transparência e o percurso dos gestos, além de tornar a experiência da cor mais diluída, de aspecto um tanto lavado (estamos distantes, que fique claro, de qualquer ideia de “fundo neutro” sobre o qual os gestos poderão se destacar, o fundo aqui é elemento ativo). Se vez ou outra essas largas pinceladas tendem a convidar o olho a mergulhar em profundidade, em apelo paisagístico, os riscos à óleo reforçam a planaridade irremediável da superfície. Entre as duas instâncias, a visão desloca-se num ir e vir – movimento próprio de uma obra dedicada a dar a ver o espaço entre nós e aquilo que vemos, isto é, dar a ver como o mundo nos toca e como nós tocamos o mundo.

 

Ademais, é possível enxergar nessas tramas não apenas a vastidão de uma paisagem composta por tudo aquilo que a vista alcança e reinterpreta, mas também fragmentos microscópicos (como detalhes ampliados em laboratório) que nos levam, na via inversa, para o mais íntimo das coisas, como se dissessem: não é preciso ir muito longe. O ir e vir cabe não somente aos olhos que deslizam entre as camadas pictóricas, mas às atribuições subjetivas que a pintura nos convoca a elaborar. Tschäpe não pinta apenas os restos dos mundos que viu, mas sobretudo o que reviu e o que transviu; aquilo que é capaz de rememorar, imaginar e fabular no espaço entre a mão e o olho. E, para isso, será preciso reivindicar memória e imaginação como instâncias indissociáveis. Sabe-se que é difícil imaginar sem mergulhar, com mais ou menos intenção, nas reminiscências do passado. Imaginar (isto é, expandir os horizontes negociáveis do possível) implica engajar-se com nossas próprias experiências e repertórios constituídos. Mas também não é possível lembrar sem uma dose de fabulação. É por isso que tais pinturas estão fadadas a construir sempre um outro lugar, seu próprio espaço-tempo. Aliás, é justamente o “outro” do lugar que lhe cabe no exercício da pintura, como se fosse possível manejar e manobrar o horizonte em sua plasticidade. Aqui, a abstração não se opõe à imaginação, pois sua saída é sobretudo lírica: põe em xeque a suposta divisão translúcida entre objetividade e subjetividade (tão cara ao século XX), não para afirmar uma expressividade romântica e idealizada, mas para implicar o sujeito na própria carne da linguagem.

 

Para tanto, cabe notar como os gestos com bastão de óleo produzem a sensação de que estamos diante de uma escrita repleta de rabiscos-arranhões entre o signo e o traço mudo, entre a iminência de uma forma significante e a pura expressão gestual. Trata-se de uma interação constante entre a produção de reconhecimento (familiaridade) e desconhecimento (falha e subversão da própria ideia de significação). Na medida que opera entre o desejo de erigir sentido e a sua própria dissolução, tal escrita-paisagem nos leva a encarar o texto do mundo na condição de sua frágil legibilidade, rememorando que linguagem também é, antes de tudo, plasticidade e desenho. Não à toa a artista, em paralelo ao fazer pictórico, também se dedica a escrever (riscar) poemas breves que funcionam como exercícios de elaboração do pensamento sensível expresso em sua obra, um trânsito da palavra ao gesto, do gesto à palavra. Um dos exemplos é o próprio título desta mostra, espécie de haicai que encara a própria pintura como captura de um acontecimento fugidio, prestes a se transformar diante dos olhos. A linha que risca as palavras parece duvidar dos seus sentidos, abrindo mão do objeto (fire) e seu contexto (in the sky) para enfatizar a ação (just sparkles) – meio pelo qual a diminuta narrativa transforma-se também em imagem. À luz da provocação do título, obras como “Waldstille” (mistério lunar que se manifesta nos veios e filamentos da floresta), “A Fire” (chama impetuosa que aponta para cima) e “paisagem para vagalumes” (repleta de pontos de luz que emergem da superfície escurecida) estão just sparkling aos nossos olhos, farejando o clarão da pintura.

 

Mas embora o conjunto de obras compartilhe inquietações afins, é preciso reconhecer que cada uma delas aponta para soluções um tanto diferentes entre si, fazendo com que sua aproximação seja mais por contiguidade do que por semelhança. Em alguns casos, os riscos são densos, aglomerados e mais rítmicos (como em Gray Pink Mind); noutros, são mais dispersos e vazados, próximos de garatujas (é o caso de Mars Brown Sparkles). A paleta também é consideravelmente diversa, embora multipliquem-se as tensões vibrantes entre diferentes campos cromáticos e, na maioria dos casos, a cor tende a proporcionar uma experiência de frescor e vivacidade. Celestes, geológicas ou aéreas, temos aqui composições que buscam se aproximar de contextos atmosféricos, a despeito de qualquer coordenada geográfica. É o modo pelo qual a pintura explora os limites de sua significação, momento no qual se permite lidar com seus outros não significantes: movimentos, energias, sensações e abstrações que dançam nos confins da consciência.

 

Foi Yuko Tsushima quem disse que “talvez a memória não seja mais do que olhar as coisas até o limite”. Diante destas pinturas, fica também a sensação de que estamos acessando o âmago de certas experiências, por mais fugidias que elas sejam. Ironicamente, Tschäpe produz, a um só tempo, a captura e a transformação desses fragmentos de mundo. O fogo que brilha no céu da pintura é a teimosia de um gesto que resiste à escuridão iminente. Ele acende e apaga, sobe e desce… como no pulsar de um organismo vivo.

 

Imagens

Vistas da exposição
Obras

Vistas da exposição

Obras

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