Valeska Soares
Equivalentes
25 Jun – 13 Aug 2022
Abertura
25 Jun, 15h–18h
Galpão
Rua James Holland 71
São Paulo
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Ao longo do processo do corpo de trabalho inédito apresentado em Equivalentes, exposição individual de Valeska Soares no Galpão, a artista comprou mais de uma centena de pinturas anônimas de naturezas-mortas ao redor do mundo, apropriando-se delas e propondo um novo significado ao apagar as imagens de frutas com tinta branca, deixando aparente apenas suas respectivas silhuetas. As obras, pintadas a óleo sobre superfícies distintas (tela, madeira, papel), têm tamanhos diversos e compõem uma instalação “estilo salon” sobre um fundo cor de rosa. O trabalho evoca temas de desejo e memória, assim como desdobra a pesquisa da artista sobre gêneros do cânone da Historia da Arte. Um ensaio da curadora Marília Loureiro desenvolve o pensamento crítico sobre a mostra.
A lança e o cesto1
Por Marilia Loureiro
“Riparógrafo!” teria sido o insulto àqueles que, no século 1, pintavam frutas e flores, animais de pesca e de caça, jarros, vasos, cestos e pratos, em cenas do cotidiano. O “riparógrafo”, ou o pintor de “riparos”, retrata o que é sujo e sórdido, moralmente e fisicamente impuro2. O naturalista Plínio (23-79 d.C), em sua enciclopédia História Natural, é quem cunha o termo “riparografia” que, mais tarde, será traduzido por um sinônimo suavizado: “rhopografia”, o retrato das coisas pequenas, triviais, desimportantes e sem valor. Se a “rhopografia” ocupa o mais baixo escalão dos gêneros da pintura, sua figura oposta é a “megalografia”, ou a pintura dos atos excepcionais, dos personagens ilustres e dos feitos que mudaram o curso da história.3
O que os exemplares “rhopográficos” guardam em comum são cenas cotidianas que silenciosamente sustentam a reprodução da vida. Em sua constância, essas cenas evocam a repetição das tarefas ordinárias, as pequenas decisões sobre nossos recursos, o cuidado com os objetos domésticos e com os seres de outras espécies que nos servem de alimento. Embora o que se convencionou chamar mais adiante de natureza-morta4 seja marcado pela ausência da figura humana, não é difícil deduzir o corpo que pertence a esse cenário. Tampouco é difícil notar o corpo que protagoniza as pinturas “megalográficas”, repletas de batalhas, confrontos e, claro, heróis. Tidas como gênero maior na história da arte, as pinturas históricas mobilizam virtudes como coragem, força, racionalidade, determinação, sacrifício. Essa divisão sexual das imagens, separada por atributos femininos e masculinos, organiza não apenas uma certa hierarquia da pintura, mas sobretudo a maneira pela qual se narram as cenas de transformação do mundo, em contraposição ao que se consensuou como uma vida pacata (still life), inofensiva e sem valor.5
São às narrativas pouco heróicas e aparentemente desimportantes que se endereça o trabalho de Valeska Soares. Em sua obra Equivalentes (2021), Soares reúne 119 pinturas de naturezas-mortas. Pintadas por autores desconhecidos e compradas pela artista em vários lugares do mundo, as obras têm diferentes dimensões e técnicas empregadas. Assim como em trabalhos anteriores, tais quais Un-rest (2010), Any Moment Now… (2014) e Doubleface (2017-2021), o ato de colecionar é o que precede e dá textura à obra. Trata-se, antes de tudo, de objetos que guardam marcas, que cristalizam hábitos, que acumulam histórias e absorvem o tempo. Objetos que tiveram outras vidas. Mas longe de pacificar esse conjunto de pinturas em uma coleção, a artista o envolve em novas tramas de sentido, impregnadas de mistério.
As frutas desapareceram das pinturas. O que sobrou delas é apenas sua silhueta. Em planos brancos sem qualquer volume, o contorno das frutas oscila entre uma figuração ausente e uma abstração orgânica, sem jamais decidir-se por uma ou por outra. Uma parte da figura foi apagada, como num lapso de memória. À semelhança da matéria orgânica sobre a mesa, a memória também se deteriora. Nesse ponto nos damos conta que o disparador de Equivalentes é a perda. Diante da lacuna da perda, Valeska Soares nos faz experimentar o fascínio pelo inacessível. E uma vez que já não podemos reconstituir o que havia ali, nos resta desejar. O desejo como produção geradora de mundos é convocado a imaginar o que não está, a fabular o que pode vir a ser e a preencher os espaços em branco. São várias as obras da artista cuja interdição de uma imagem termina por nos abrir a possibilidade de “imagear” outras tantas.
Na mesma medida que proíbe, Soares convida. Na mesma medida que priva, também oferece. E o que foi apagado das pinturas de Equivalentes, materializa-se em objetos: são inúmeras frutas de madeira espalhadas pelo chão, como que varridas para um canto da sala. As frutas que faltam de um lado excedem do outro. Valeska Soares está o tempo todo a modular dualidades, sem nunca fixar-se em uma das partes. No intervalo entre o um e o outro, entre a proibição e o convite, entre a falta e o excesso, a artista nos envolve em sua trama insolúvel e nos convida a ficar um pouco mais com a obra. É precisamente nesse intervalo entre-atos que repousa o mistério. E na vã tentativa de desvendá-lo, habitamos esse espaço de indeterminação, onde o tempo transcorre à revelia do tempo do relógio. Não há sedução possível sem intervalo.
Voltemos à oposição entre as imagens “megalográficas” da lança e da flecha, e as imagens “rhopográficas” do cesto de frutas. Na contramão desse binarismo heteropolítico6 que nos foi herdado, o trabalho de Valeska Soares cria narrativas escorregadias, que vazam e escapam a valores que se queriam universais. Em seu enredo das coisas aparentemente pequenas, não há um herói, mas todos são potenciais personagens que cabem no cesto — as frutas, um livro, um travesseiro, caixas de chocolate e outros tantos objetos que povoam seus trabalhos7. Reunidos num vasto corpo de obra, eles se relacionam criando tramas que preferem o capricho à batalha, o delírio à racionalidade, o desejo ao triunfo, o mistério ao previsível “grand finale”. Aqui a temporalidade não segue a cronologia veloz e linear do progresso épico que aniquila os intervalos, mas se faz cheia de lacunas e dualidades, de curvas e entrelaçamentos instáveis. A transformação que importa à Soares não ocorre por meio da lança e da flecha, que espetam, batem, furam e narram a história do assassino — ou a história da civilização —, mas dentro de um cesto que recebe, reúne, transporta, envolve e gesta outras histórias — histórias que costuram a vida.8
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1 Título inspirado no texto “O arco e o cesto”, do antropólogo Pierre Clastres.
2 Bryson, Norman. Looking at the Overlooked: Four Essays on Still Life Painting. London: Reaktion Books, 1990. p. 136.
3 Ibidem. p. 61
4 No século 17, surge na Holanda a palavra “stilleven”, que dá origem ao termo inglês “still life”. Na França, o termo usado é “nature morte”, que chega ao português como “natureza-morta”.
5 Sobre a divisão sexual das imagens de transformação ver o texto de Alana Moraes “Política como prática de experimentação”, publicado no Jornal Nossa Voz, edição no. 1020. Casa do Povo, 2019-2020.
6 https://cedla.org/reflexiones-sobre-la-crisis/contra-la-binariedad-heteropolitica-en-respaldo-a-segato-galindo-y-rivera/
7 Aqui remete-se a outros trabalhos de Valeska Soares, respectivamente Equivalentes (2021), Edit (2012), Duet (2002) e Sugar Blues (2013).
8 No texto “A teoria da bolsa da ficção” (São Paulo: n-1 edições, 2021), Ursula Le Guin desenvolve a teoria de que o primeiro aparato de cultura teria sido um cesto e não uma lança, e utiliza esse pressuposto para rearticular as narrativas de ficção.