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Sara Ramo

Cartas na mesa

12 Apr – 19 May 2018


Abertura

12 Apr, 10h–13h


Galpão

Rua James Holland 71
São Paulo

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Texto por Bianca Dias (PT)

Texto por Bianca Dias (EN)

Cartas na mesa, a nova exposição de Sara Ramo em Fortes D’Aloia & Gabriel | Galpão, apresenta esculturas, colagens e intervenções que, inspiradas em elementos do teatro do absurdo, evocam com olhar crítico as estruturas que regeram e regem as atuais tensões políticas e sociais do Brasil e do mundo.

O trabalho que dá título à mostra é uma série de 10 colagens em tecido, pigmento e costura que guardam forte relação com estandartes festivos. Três dessas peças integram a exposição, como cartas tiradas de um jogo de adivinhação. Quando reunidos, os títulos de cada colagem formam uma espécie de poema ou marchinha de carnaval oracular.

 

CARTAS NA MESA

1. À fé de todos, espelho meu

2. Às filhas e aos filhos deste solo

3. Margens não tão plácidas

4. Há histórias não contadas

5. O rei está nu

6. Berços de ouro

7. O lucro não é tudo

8. Festejar importa

9. A alegria nos move

10. Salve o sonho delirante!

 

As questões apresentadas nesse baralho político-poético permeiam a atmosfera da exposição. Em Contrato social, a artista equilibra pedras falsas em varetas de diferentes categorias de metal enquanto uma pedra real se avizinha do conjunto, solta no chão. Detrito-origem são pedras alegóricas forjadas com barro, terra, cimento e cédulas de dinheiro incrustadas. Aqui, a artista realiza uma arqueologia do desejo pelo viés do consumo: o modo como o dinheiro se estrutura ontologicamente em nossas experiências e relações.

Esse interesse por criar rastros telúricos e cênicos se reflete ainda nas obras Evidência e Buraco negro. Se na primeira a artista promove a verticalização do solo – um triângulo de terra deslocado na parede –, na segunda a operação é inversa: Sara abre um orifício cavernoso na parede, suscitando curiosidade e repulsa.

Bianca Dias, em texto criado especialmente para a exposição, afirma: “A dimensão alegórica se presentifica não como velamento, mas como maneira de tocar o real, como ficção que engendra o que há de horror e de abjeto na cultura. Como uma ética que contorna, pelo chiste e pela ironia fina – este lugar impossível que não para de se inscrever e que vem se realizar tanto como lugar de gozo como de causa do desejo.”

Sara Ramo, 1975, de origem hispano-brasileira, atualmente vive e trabalha em São Paulo. Suas exposições individuais recentes incluem: Para Marcela e as outras, Capela do Morumbi (São Paulo, 2017); Punto Ciego, EAC – Espacio de Arte Contemporáneo (Montevidéu, 2014); Desvelo y Traza, Matadero (Madrid, 2014) e Centre d’Art la Panera (Lérida, 2014); Penumbra, Fundação Eva Klabin (Rio de Janeiro, 2012). A artista já participou das Bienais do Mercosul (Porto Alegre, 2013 e 2007), de Sharjah (Emirados Árabes, 2013), de São Paulo (2010), de Veneza (2009), entre outras. Sua obra está presentes em importantes coleções como Fundación Botin (Santander, Espanha), Fondazione Cassa di Risparmio di Modena (Itália), MAM (Rio de Janeiro), Pinacoteca (São Paulo), Inhotim (Brumadinho), entre outras.

 

 

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Margens não tão plácidas

 

Texto por Bianca Dias, publicado por ocasião da exposição Cartas na mesa de Sara Ramo

 

 

Em O mal-estar na civilização, Freud fixa o ponto fundamental de nascimento da sociedade e também aponta um fim de mundo, no sentido de que este nascimento mítico-estrutural – que invocaria uma narrativa que condensa as leis básicas da subjetivação do homem com relação ao social – estaria inevitavelmente marcado por mal-estar e rupturas.

O trabalho de Sara Ramo persegue essa trilha: é uma cosmogonia, uma aparição de mundo e também uma desaparição, uma escatologia, o fim de um ciclo. Na maneira como os objetos se articulam, a dimensão do íntimo é retomada a partir do político, como nos cintos agrupados e descidos ao chão. Do objeto mais aderido ao corpo se faz um corpo social e se constrói uma crítica aguda à lógica de poder e violência que estrutura as relações sociais.

O que transparece é uma condição de gozo – no sentido psicanalítico, um emaranhado de sofrimento e prazer – que, nas entranhas do tecido social, alicerça as trocas humanas. Um “mais de gozar” como assinala o psicanalista Jacques Lacan e como Sara Ramo dá a ver nas notas de dinheiro incrustadas nas pedras: detrito e origem, natureza e cultura, orgânico e inorgânico, pulsação que permeia tudo, que atravessa a subjetividade imantando os objetos e as vidas, as relações, conflitos e desejos. O dinheiro é matéria, carne, corpo, vísceras, sexualidade, sobrevivência de um resto assimilado pela cultura.

Há também uma dimensão geológica presente, como se vê em Evidência: um solo que se verticaliza, uma entidade estranha feita de terra no formato de um triângulo escaleno (em que todos os lados são desiguais), assim como seus ângulos internos.

Impossível não evocar Georges Bataille com sua noção de dispêndio: em cada gesto da artista, uma estranheza flerta com a alucinação do excesso, do sacrifício, do profano e do sagrado. Nada está ali por acaso ou como exercício meramente estetizante. Sara Ramo se vale dos materiais mais ordinários – roupas usadas, terra, tecido, notas de papel, isopor, fitas coloridas para colagens, papéis diversos. Há uma economia complexa que não se resolve, mantendo em aberto o mundo – como em Bataille, que trata o dispêndio como uma tentativa de representar o mundo, distanciando-se da explicitação da economia isolada que foca suas análises somente na relação concreta entre produção, lucro e acumulação.

O resultado é uma reflexão sobre o modo de representação do mundo em relação ao problema do destino da energia que circula nas superfícies dos corpos e das coisas que é, ainda segundo Bataille, o modo dispendioso, algo que abarca a consumação, o erotismo, o limiar trêmulo entre natureza e cultura – elementos que já estavam presentes, por exemplo, no vídeo Hotel Paradise de 2014. Sara retoma algumas questões encetadas ali: a linha fina que conecta a realidade e o delírio que é a própria linguagem, o selvagem da natureza e a violência da cultura, a dimensão do dejeto e do objeto – fascínio e repulsão.

Nesse reviramento de solo, de sangue, de restos onde a cultura se erige, a artista convoca a festa em colagens em que reafirma a fúria e a fé – Festejar importa; A alegria nos move; Salve o sonho delirante! – e, para tocar o real, constrói uma cenografia que conjuga a questão do gozo: espiral de dor e prazer.

Há, porém, uma voltagem poética e quase redentora num exercício sublimatório que é uma tentativa de reorganizar algo em torno do vazio deixado pelos restos. É um fim que se escreve, mas o fim de um ciclo e de uma lógica de poder e violência. Para isto, Sara Ramo flerta com o vazio e com a ideia de Coisa, abordada primeiramente por Freud e retomada por Lacan. A Coisa é o que resiste a qualquer tentativa de significação ou de representação, é o lugar vazio. A Coisa é, em sua essência, irredutível a uma imagem ou a um significante. A Coisa evoca a falta. Sara Ramo zela por este mistério. A artista parece saber que a Coisa é, por assim dizer, a própria inexistência do objeto. É esta falta que mantém o desejo vivo.

O que parece estar em jogo para a artista é a ideia de que, na criação artística, o sujeito não evita o vazio da Coisa. Enquanto o capitalismo e suas derivações preenchem este vazio com o autoritarismo de seus discursos, a arte captura o objeto na medida em que não nega o incapturável que também se encerra aí. A arte coloca o vazio no centro da criação e é com ele que a artista trabalha. Seu percurso pelo “fim do mundo”, pela origem e pelos detritos, são uma forma de contornar mas, também, de tocar o real.

Sara Ramo faz uma bricolagem significante, dando nova significação a objetos já existentes. Ela encontra um objeto e renova seu utilitarismo: transforma-o em algo que está para além da lógica do útil para a qual fora destinado. Assim, revira as imagens por dentro, encontrando o que Lacan chamou de “semente da arte”, um buraco onde o inconsciente será sempre inventado. No buraco negro que Sara Ramo propõe, algo se destaca: o falseamento operado é índice do real, do que não pode ser representado.

A dimensão alegórica se presentifica não como velamento, mas como maneira de tocar o real, como ficção que engendra o que há de horror e de abjeto na cultura. Como uma ética que contorna, pelo chiste e pela ironia fina – este lugar impossível que não para de se inscrever e que vem se realizar tanto como lugar de gozo como de causa do desejo.

Neste falseamento alegórico que faz circular os jogos de sentido e aponta ainda a dimensão de onde o sentido escapa, encontramos Contrato social: um conjunto de pedras falsas, suspensas por varetas de ouro, prata e bronze junto a uma pedra real, pesada e impenetrável, que fica fora do campo da estrutura, mesmo pertencendo ao conjunto, acentuando uma relação de vizinhança dos elementos que se constitui pela via do vazio, pelo silêncio.

Seu trabalho denuncia que a dimensão do ideal serve para recobrir os dejetos. O uso do cenográfico, do ridículo e do chiste encontram-se na encruzilhada de uma ferida social profunda. É preciso saber fazer com os destroços, extrair das ruínas a possibilidade de uma nova origem. Usar a destruição como anunciação do novo, como nas colagens que se configuram numa espécie de festa delirante dos restos. A política também se efetua como um resto que se depara com o dispêndio como algo incontornável que afeta todo um campo simbólico que toca a arte, a psicanálise, a antropologia, a economia.

Talvez o que reste dessa subtração complexa que o trabalho de Sara Ramo opera seja a dádiva, a possibilidade de redenção demasiado humana. Se a festa importa aqui é justamente na perspectiva de contornar, de encontrar o real em sua impossibilidade. Trata-se de dúvida e de dádiva: despojamento das certezas para se conservar a agudeza última da arte – o lugar movediço em que o objeto não tem mais relação com o sentido e rompe com a realidade, pois é ele mesmo a encarnação do real.

É neste movimento sutil e vulcânico que Sara Ramo sustenta seu lugar de artista como catadora de restos à maneira como propõe Walter Benjamin: o artista é aquele que reúne o que a sociedade despreza para devolver ao mundo uma transformação que daí decorre, num gesto poético extremo, a partir de uma crítica heroica que coleciona e coleta os anais da desordem para renascer num relâmpago de transgressão.

 

 

* Bianca Dias é psicanalista, crítica de arte, ensaísta, autora de Névoa e Assobio

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Obras

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